O HOMEM, A MULHER e A APOSTA
Comédia Musical de Maria Helena Kühner (*)
1. Elenco : Uma Atriz
Um Ator
2. Cenário: Fundo claro ou com apenas um telão; três cubos, em posições variáveis ao longo das cenas.
3. Música (de preferência, ao vivo): os dois Cantores e o(s) músico(s) permanecem nas duas laterais; algumas músicas são cantadas por inteiro – em geral, no início e/ou fim de cada esquete – outras só em frases musicais comentando a cena.
No caso de atores que também cantem, esta pode ser uma opção.
4. As figuras de Deus e do Diabo (vozes gravadas, em off) são projetadas no telão em fundo, sob forma de desenho animado. Alternativas possíveis: teatro de sombras, ou uso de “máscaras” (gobos, formando silhuetas) sobre cor viva (vermelho / azul) no projetor.
(*) Dois dos episódios, “Caso de Vida e Morte” e “Quando um par vira ímpar” são da autoria de Ewa Procter.
( Opcional: Mostrar os títulos dos episódios, excitando a curiosidade do público. Se acaso, no telão em fundo, ou em estandarte trazido à lateral por um dos atores ou cantores, surge o título:
Tudo começou quando…
Música de Abertura (paradisíaca, claro…)
abre para Adão, em profundo aborrecimento. Anda de um lado para o outro, chuta pedrinhas etc. até que pára no meio da cena:
– Senhor !
Nenhuma resposta.
– Senhor !!!
Nada.
– ( tom) Deus, ó Deus, onde estás que não respondes
em que astro, em que estrela tu te escondes,
embuçado nos céus!…
( satisfeito, para o público) Ah, depois dessa Ele aparece, com certeza…
Telão se acende em fundo: surge Deus, no colorido fundo do Paraíso. Sonoplastia sublinha.
Deus – ( voz em off) – Qu’é isso, Adão! Esta fala não é sua. Vai ser de um obscuro poeta, Castro Alves, em um obscuro país, o Brasil, e só daqui a alguns séculos.
Adão – Perdão, Senhor. É que…eu não estou agüentando mais.
Deus – Não está agüentando o quê, Adão?
Adão – Isso aqui… É tudo uma beleza, um paraíso mesmo. Mas – o Senhor me perdoe… está tudo muito chato.
Deus – Chato, Adão? Se aqui você tem tudo: flores, frutos, o coro dos querubins e serafins o dia todo nos seus ouvidos. (Sonoplastia correspondente…) Que é que você quer mais?
Adão – Eu queria…Todos os animais têm uma fêmea. E eu?… Quero uma companheira, Senhor. É isso: uma companheira!
Sonoplastia introduz uma segunda voz e/ou figura (Diabo) comentando:
Diabo – Hum, não sabes o que te espera se Ele te atende…
E surge em fundo mais uma figura: o Diabo.
Deus – Pronto. Vai complicar tudo. Este cara é o diabo.
Diabo – (voz sempre em off) Em pessoa!
Deus – Que é que você tem que se meter nisso?
Diabo – Senhor, eu sou Lúcifer. E Lúci-fer, meu nome é quem diz, é “aquele que traz a luz”: eu tinha que trazer este “esclarecimento”.
Deus – Tá bom. Mas agora cai fora, vai.
Diabo – Nada. Eu fico por aqui. Acho que vou me divertir muito.
Adão – Então… o Senhor me atende ? Olha, dou até um osso de minha costela para…
Deus – Sem essa, Adão! Se eu crio a mulher de um osso de sua costela as feministas do século 20 acabam comigo!
Atrás, sem que Adão ainda a veja, surge figura feminina em pose “sedutora”. Sonoplastia acusa algo “diferente”.
Deus – Pronto. Taí o que você quer.
Ele se volta, surpreso.
Adão – Que… quem é você…?
Música ( cantora, da lateral) Eu sou a mosca que pousou na sua sopa
Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar…
(A Mosca- Raul Seixas)
Ele se aproxima e a examina, toca etc. Ela vai adquirindo sinuosidades de serpente (tudo sempre meio, ou totalmente, coreografado) sobre
Música: Eva querida
(Cantor na lateral) Quero ser o teu Adão
Dar-te-ei o meu amor, a minha vida,
Em troca do teu coração…
Hei de conquistar o teu amor se Deus quiser,
Custe o que custar haja o que houver
Serei capaz de qualquer prejuízo,
Mas te darei o paraíso!
(Benedito Lacerda e Luiz Vassalo)
Cena congela sobre Adão e Eva. Telão (ou gobos) permanece em fundo com seu diálogo (gravado)
Deus – (sempre voz off) – Ser Deus não é fácil…Já sei a confusão que vai dar até esses dois se entenderem, mas…
Diabo – Essa costela é um osso duro de roer! O Senhor não vai dar nem u’a mãozinha?
Deus – Eu os criei com livre arbítrio. Eles é que terão que encontrar os caminhos para isso.
Diabo – Aliás, o Senhor nem poderia: sua Trindade é toda masculina – Pai, Filho, Espírito Santo. O Senhor não saberia ser imparcial.
Deus – Hum…É o que você acha?
Diabo – Claro. Por isso sei que eles não vão se entender nunca! Até aposto! O Senhor quer fazer uma aposta comigo?
Deus – De novo? Mania de me desafiar. Ainda não aprendeu?
Diabo – Mas desta vez eu ganho! Ora, se…! E se eu ganhar… se eu ganhar o Senhor vai ter que pôr uma mulher na Santíssima Trindade!
Deus – Um elemento feminino na minha Trindade…? Hum… (pausa).Tudo bem, Lúcifer. De quanto tempo você precisa para tentar provar o que diz?
Diabo – Ah, pouco tempo: uns 20 séculos bastam. Digamos, até o século 21 da era deles.
Deus – Aceito. Tá apostado.
Diabo – Como tenho certeza que o homem e a mulher nunca vão se entender… desta vez eu ganho a aposta! Hah,hah! …
Música: Cantor – Adão, meu querido Adão
todo mundo sabe que perdeste o juízo
por causa da serpente tentadora
o nosso Mestre te expulsou do paraíso….
Cantora: Mas em compensação o teu pobre coração
que era pobre, pobre, muito pobre de amor
cresceu e multiplicou, meu Adão,
o teu pecado encantador. (bis)
(Benedito Lacerda e Oswaldo Santiago)
Eva vai se mostrando “fissurada” com a idéia do “pecado encantador” … e terminam os dois abraçados. Palco escurece enquanto se ouve o lundu:
Cantor (voz) : Isto é bom, isto é bom
Isto é bom que dói…
Cantora (voz) : Isto é bom, isto é bom,
isto é bom que dói
Juntos Ai, dói…
(Lundu- Xisto Bahia)
No telão ( ou cartaz mostrado) agora só o título:
O que é ser Homem
O que é ser Mulher
Cantora: Ó mãe,
me ensina, me explica, me diz
oh mãe
o que é “feminina”…
Não é no cabelo, no dengo, no olhar
se é feminina por todo lugar
Ó mãe……
(Feminina, Joyce)
Juntamente com Ator e Atriz ( como crianças pré-adolescentes) vão entrar uma voz masculina e uma voz feminina ( em off ), dando “ordens” que ilustram bem a confusão das pobres crianças educadas em nossa cultura para saber o que é ser homem ou ser mulher…
Pantomima dos atores, que vão ilustrando em seus gestos e expressão corporal as ordens recebidas:
Voz feminina – Você é uma mulher, minha filha… Seja doce, gentil, meiga, feminina…Você pertence ao sexo frágil…
Voz masculina – Você é um homem ou um rato, meu filho? Vai lá, chuta
as canelas dele! Homem não leva desaforo pra casa!
Voz F. – A mulher é por natureza obediente, passiva, submissa,
dependente…
M. – O homem é por natureza forte, decidido, ativo, machão!
F. – A mulher é intuitiva e irracional…
M. – O homem deve ser frio, calculista, racional…
Ritmo se acelerando:
F. – Agarre seu homem! Isto é o mais importante!
M. – Ela deu mole e você não comeu? Tá virando veado?
- F. – A sedução faz parte do “eterno feminino”…
M. – A dominação faz parte do eterno masculino !
F. – A mulher é o braço direito do homem!
M. – O homem é a cabeça do casal!
Ritmo das falas foi se acelerando cada vez mais, se confundindo, se superpondo, até que, em dado momento… os papéis parecem se inverter: eles trocam de posição na cena, ela cumprindo as ordens masculinas e ele as femininas:
F.– Seja defensiva, ardilosa, disfarçada…
M.– Seja agressivo, durão, encare!
F. – … passiva e obediente…
M. – …decidido, macho!
F.- Intuitiva…
M. –Racional!
F. – Emotiva!
M.- Calculista!
(Inversão)
F. – Maternal!
M.- Poderoso!
F.- Romântica!
M.- Cabeça!
F.- Emoção!
M.- Durão!
F.- Sexy!
Ator ( já desnorteado)- Ah! Eu não estou entendendo mais nada!
Voz Fem.- Muito bem, filha! Você agora é uma mulher!
Ator – Mas, pelo que ela disse ( aponta local da voz feminina) acho que minha mãe…é homem!
Voz Masc.- Parabéns, meu filho! Você agora é um homem!
Atriz – Mas se o homem é a cabeça do casal…então são duas pessoas com uma só
cabeça? É um monstro!
Música :
Cantora: Que diferença da mulher o homem tem?
Cantor : Espera aí que eu vou dizer, meu bem.
É que o homem tem cabelo no peito
tem o queixo cabeludo e a mulher não tem.
No paraíso um dia de manhã
Adão comeu a maçã,Eva também comeu,
se ela deu mancada, ele também deu.
Cantora: Mulher tem duas pernas, tem dois braços
duas coxas, um nariz e uma boca
e tem muita inteligência
Cantor : O bicho homem
também tem do mesmo jeito
Juntos : se for reparar direito
tem pouquinha diferença!
No telão, Diabo surge, metendo a cabeça e dando um aparte:
Diabo– “Pouquinha diferença?…”Só que eles são educados de maneira tão diferente que fica difícil um entender ou outro! O que pra mim é muito bom! Comecei bem!…
No telão ou cartaz agora novo título:
Receita de Príncipe Encantado
Música : Que tal a gente fazer
um bolo de chocolate
pega a farinha e a manteiga
e pedaço de tomate (Arg!)
E bate tudo numa batedeira
e vai mexendo dessa maneira…
( Chocoloco- Glória Lattini)
Com a música, Atriz reaparece: avental de babadinhos, ar e fala empostada, empurrando uma mesa com vasilhame, tipo a desses programas de receitas culinárias pela TV.
Apresentadora – Hoje eu lhes trago uma receita importante que toda moça prendada deve conhecer… e usar: a receita de Príncipe Encantado. Príncipe Encantado não é uma receita fácil. É uma receita que veio da mamãe, que a recebeu da vovó. Tem o peso e a experiência de toda uma tradição que deve ser seguida, porque, como mães, temos o dever de orientar bem nossas filhas… Por isso, prestem bem atenção! Aí vai. Anotem!…
Pega-se uma coleção, já bem estudada e selecionada, de todos os possíveis candidatos (vai alinhando sobre a mesa bonecos com trajes e características de acordo com as falas), tendo o prévio cuidado de colocar diante de cada um seus possíveis usos, vantagens e desvantagens.
Apresentadora – Coloca-se numa peneira bem fina (vai colocando na peneira os bonecos), para que todos sejam devidamente peneirados e só passem os realmente aproveitáveis…
Cantor (de lá) Aprendi a domar
amansando éguas,
e para as mulheres
valem as mesmas regras!
Animal, te pára!…
(Da MPB gaúcha)
Apresentadora (de início surpresa, agora corta ): HEIN?! Os de casca grossa, por exemplo, devem ser imediatamente eliminados! (Joga no lixo um boneco. Cantor se interrompe, sem graça) Os chatos também, fora!, que têm um gosto de ranço insuportável!
Cantora : Joga fora no lixo ! ( bis)
(Joga fora – Sandra Sá)
Apresentadora – Comece em seguida a descascá-los, um por um, pra ver o que sobra de cada um – e se o que sobra dá pra fazer um bolo de… casamento. Vá pesando todos os ingredientes necessários – a quantidade varia com o gosto de cada mulher, há ingredientes que são até dispensáveis para algumas: (mostrando um boneco) Bonito… Elegante…Rico – ou pelo menos com algum, que sustentar malandro não tem graça…
Cantor: Genésio, a mulher do vizinho
sustenta aquele vagabundo…
( Vagabundo -_MPB4 e João Bosco)
Apresentadora (comenta) – É ruim, hein?…
Cantora : Isso não me convém
e não fica bem
eu no lesco-lesco na beira do tanque
pra ganhar dinheiro
e você no samba o dia inteiro
ah, o dia inteiro…
( Vai trabalhar, Ciro de Souza)
Apresentadora – Assim não dá, né?… (retoma o tom anterior) Mas voltando a nossa receita:… (sempre com novo boneco) Inteligente! Sensível – para algumas mulheres este é o fermento mesmo do bolo, só que é um tanto raro, não se acha fácil no mercado…Tolerante – que o mau humor azeda todo o resto!… Romântico – quem não gosta de receber flores e presentes em vez de ter o aniversário esquecido?
Cantora: Eu amanheço pensando em ti
Eu anoiteço pensando em ti
Eu não te esqueço
É dia e noite pensando em ti…
( Herivelto Martins e David Nasser)
Apresentadora ( aproximou-se dele, e retoma, dengosa) – Fiel …! Ah! Fiel! Muitas vezes é por falta deste ingrediente que o bolo desanda!
Cantora : Meu moreno fez bobagem
Maltratou meu pobre coração
aproveitou minha ausência
e botou mulher sambando no meu barracão…
( E fez bobagem– Assis Valente)
Apresentadora – Enfim, evidentemente, responsável, capaz de assumir a função de provedor e chefe da família, de atender a todas as necessidades da esposa – eu disse todas, desde… as que vocês estão pensando, até as que um cartão de crédito jogado com classe sobre a mesa resolve no ato!
Antigamente se comprava no mercado esse produto, já misturado e embalado – (vai buscá-lo na cesta de lixo e o exibe com o rótulo”Bom Partido”) O Bom Partido! –
Comentário musical: É o bom! É o bom! É o bom!
( Eduardo Araújo)
Apresentadora – (suspirosa) O Bom Partido… Ai! Lembram-se dessa marca? Tinha todos os ingredientes: o provedor, o protetor, o chefe, o guia… Pois é, mas a marca saiu de circulação… Acho que porque, depois de aberta a embalagem, muitos vinham estragados… E, mesmo com a forma untada de… promessas, o bolo do casamento solava!
Cantora: Ai, esse cara tem me consumido
a mim e a tudo que eu quis…
Apresentadora – Por isso um conselho: a experiência mostra que é sempre bom provar – provar, vocês sabem o que eu quero dizer – antes de levá-lo pra casa…
Cantora – …Vem me botar na rede
reviver a sede
vem me fazer aquele
amor
parceiro das delícias,
amor…
(Geraldo Pereira)
Apresentadora – Provar, porque há alguns que depois de cozidos, digo, de casados, ficam intragáveis! O que mostra que, ou faltaram alguns ingredientes básicos, ou o forno do casamento não estava na temperatura adequada, ou que… era melhor ter ido levando em banho-maria, sem ir ao fogo de casar …
Cantor: Ela só quer
só pensa em namorar… (bis)
( Xote das meninas – Marisa Monte)
Apresentadora – E se depois de tudo isso não funcionar, ou se você de novo não acertou a receita, não se aflija: misture o resto que ficou na peneira, sacuda bem e… pesque qualquer um – “não tem tu, vai tu mesmo”… que esse negócio de ficar sozinha é muito chato e, além do mais, desvaloriza a mulher no mercado! Homem é que nem cachorro com poste: só mija onde sente o cheiro de outro…!
Cantor: Eu não sou cachorro, não
Pra viver tão humilhado!
Eu não sou cachorro, não
pra viver tão desprezado !..
(Eu não sou cachorro – Waldick Soriano)
Apresentadora (pra ele) – Mas não fui eu quem disse isso: foi um homem mesmo que me garantiu! (Vai saindo, empurrando seu carrinho-mesa e acenando, sempre afetada, ao som da música)
Música : Agora eu era herói
e o meu cavalo só falava inglês
a noiva do cow-boy
era você além das outras três…
No telão ou cartaz, o titulo da nova cena:
Um Produto Procurado
Locutor entra sob fanfarra: de smoking, tipo um apresentador de um desfile de modas ou eleição de Miss Qualquer-Coisa.
Locutor – Boa noite, senhoras e senhores! (tom) Numa sociedade de mercado investir no produto certo é uma garantia de qualidade! E o produto que hoje anunciamos é dos mais procurados, já que 50% da sociedade quer comprar e os outros 50% vivem de sua venda. Senhoras e senhores, com vocês… ( gesto e empostação de apresentador) um produto procurado…
Locutor – … a Mulher Ideal !
Surge, em grande pose, a Atriz, traje longo, cabelos presos ao alto:
Música: Bela, bela, mais que bela
mas como é o nome dela
não era Helena nem Vera
nem Nara nem Gabriela
seu nome, seu nome era…
(Bela, bela- Milton Nascimento)
Ela começa a desfilar, como que em passarela, enquanto ele continua, com a mesma empostada ênfase:
Locutor – Como a sociedade atual foi feita por nós, homens, e para nós, o produto “Mulher Ideal” foi criado, é claro, em função das necessidades e aspirações da clientela masculina. Portanto, (dirigindo-se a alguém próximo, na platéia) você, que é um homem inteligente e sabe bem investir, estude bem o seu tipo antes de decidir que tipo de mulher seria ideal para você.
Ela foi ao fundo e agora retorna, uma nova figura (acessórios novos) mas ainda em pose e passo de desfile, exibindo-se e ilustrando o que ele diz:
Locutor – Vejamos: se você é um executivo classe A, o tipo que lhe cabe é a mulher social: elegante, acondicionada em atraente embalagem … ela parece estar sempre alegre – seu sorriso é permanente… Parece sempre bem informada – vê todos os jornais da tv…Sempre tranqüila, mas a pose pronta para a foto que realize seu sonho maior: sair nas colunas sociais!… É a acompanhante ideal de executivos classe A que, ao se exibirem em sua companhia, darão a todos a impressão de que sua cotação na Bolsa do Sexo é tão alta quanto na Bolsa de Valores!
Locutor agora finge responder a uma pergunta vinda da platéia.
Locutor – Como…? O problema deste produto?…
(Ela se mostra indignada e sai, furiosa; ele vai explicar olhando, inquieto, para onde ela saiu) Bem, nada é perfeito… O problema deste produto é que… é que ainda não conseguimos eliminar dela uma postura um tanto… calculista diante de tudo, sua irresistível tendência a ser uma caixa registradora – a síndrome do ganho, do lucro, sabe como é?
Cantor : Nunca vi fazer tanta exigência
nem fazer o que você me faz,
você não sabe o que é consciência…
Locutor -Afinal, se ela é um tipo social, absorveu bem os padrões que dominam em nossa sociedade…Os senhores não se perguntam, ao fazer qualquer investimento: quanto é que eu levo nisso? Pois é… Ela também… Mas estamos aperfeiçoando este produto para deixá-lo… no limite do suportável …
Cantor Você só pensa em luxo e riqueza
tudo que você vê você quer…..
Locutor -… limite que já não é baixo. Que o digam aqueles que o pagam!
Locutor – (dirigindo-se a outro espectador) Já se você é do tipo caçador e seu esporte predileto é na horizontal, pode tentar a sexy…
Seus olhos se voltam para o fundo, onde luz agora destaca a nova figura que surge, vestindo longo muito justo, provocante, rebolativa, jogando com os cabelos soltos e fixando sedutora e provocativamente os homens mais próximos ao desfilar.
Música : Eu sei que sou bonita e gostosa
e sei que você me ama e me quer
sou uma fera de pele macia
cuidado, garoto, eu sou perigosa!
Eu posso lhe dar um pouco de fogo
eu posso fazer você meu escravo
eu faço você ficar louco…
Dentro de mim… muito louco…
( Perigosa- Frenéticas)
Locutor – Ela aprendeu a ler no kama-sutra e até hoje só escreve cama-sutra com c de cama, mesmo… ( ela vai se agarrando a ele, provocadora) O violão foi inspirado nas formas de seu corpo, que mal você toca já começa a emitir sons – estou falando do violão, é claro.
Cantora : Não existe pecado
do lado do baixo do equador
vamos fazer um pecado
suado, rasgado, a todo vapor…
Locutor – Ao lado dela você será sempre olhado, invejado, procurado, adulado… ( para um espectador) Hum…? O problema deste produto?… Todos querem sempre saber os possíveis problemas… Natural… Investimento é investimento…
Ela esnobou a pergunta e saiu pela lateral, após um convidativo sinal a alguém da platéia, que o locutor não reparou.
Locutor – Bem… o único senão deste produto é que… depois de certo tempo ( gesto expressivo na testa) você fica sem condições de passar debaixo de portas, ou de árvores de galhos baixos… E o dia que morrer terão que lhe fazer um caixão especial, mas…
Sonoplastia comenta ironicamente…
Locutor – Em compensação, seu custo é menor que o do produtor anterior, pois seu investimento e patrimônio é apenas… o seu corpo.
Locutor – Mas, já que estamos tratando de custos, temos também o modelo econômico, mais popular, de linha tradicional…
A Atriz agora surge em trajes caseiros, tipo camiseta e bermuda, sandália havaiana, sacola de supermercado na mão, sorriso meio tolo e ar um tanto serviçal.
Locutor – Não é difícil reconhecê-la…
Cantor: Todo dia ela faz tudo sempre igual
me sacode às seis horas da manhã
me sorri um sorriso pontual
e me beija com a boca de hortelã…
Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar
e essas coisas que diz toda mulher
diz que está me esperando pro jantar
e me beija com a boca de café…(etc.)
(Cotidiano- Chico Buarque)
Ela veio ao locutor, ilustrando com seus gestos o que diz a música. Depois se afasta e fica parada no fundo.
Locutor – Quem não conhece a chamada “mulher doméstica”? (Que as más línguas chamam de “domesticada”…) É um produto tradicional, de grande aceitação no mercado. Mas, nesta versão moderna, último tipo, tem características inéditas: ela não pede mais que você conserte o aquecedor, nem a pia vazando, nem o abat-jour que está em curto. Pasmem! Ela sabe fazer tudo isso! (Ela junta as mãos ao alto, em gesto de vitória e ri tolamente) Assim sua casa funciona com o menor custo possível. E de noite, se você gosta de… comida caseira…(ela esconde o rosto, envergonhada) ela está ali mesmo, às suas ordens…Ou seja, se você é apenas um funcionário público, ou um mísero assalariado, ou um possível futuro desempregado, e pra você é vital um produto de baixo custo, esta é a sua … mulher ideal!
Ela volta a erguer a mão, vitoriosa, e vai saindo sob o olhar um tanto depreciativo do Locutor, que passa a responder a nova pergunta da platéia.
Locutor – Ahn?… Se juntasse as três em um único produto? Ah, meu amigo, seria a Mulher-Maravilha. É o que todos querem, né? Mas, por enquanto, só existe em ficção. Os japoneses tentaram a marca Gueixa, que se aproximava um pouco, mas as mulheres atuais de lá mesmo entraram no mercado e reduziram sua fabricação. Uma pena…
Cantora – E a mulher independente atual?
Locutor (um tanto desconcertado) Ahn?… A mulher independente atual? Não, não, não, garanto que esta não é fabricação nossa! E é um produto ainda imprevisível, que pode dar sérios problemas, porque seus mecanismos estão fora do nosso controle! Por isso desaconselhamos: melhor ficar com o que se conhece do que se arriscar com esses… produtos novos!
Mas há outras opções, claro. Como o mercado funciona em função da demanda, vá declarando a sua…
Cantor: … às vezes passava fome a meu lado
e achava bonito não ter o que comer…
Atriz ( retornando à cena) – Bonito, passar fome? Eu, hein ?!…
Cantor (para ela)
Eu quero uma mulher que saiba lavar e cozinhar
E que de manhã cedo me acorde na hora de trabalhar…
(Wilson Batista e Haroldo Lobo)
Atriz – (aproximando-se) O distinto está procurando uma empregada?
Cantor – Bem, empregada, propriamente, não…
Atriz – Já sei: não assina carteira. Mas, e impropriamente… como é que o
distinto pretende remunerar ?
Cantor – Remunerar…?! Bem…Eu te darei o céu , meu bem, ( Bis
e o meu amor também…. (
(Roberto Carlos e Erasmo Carlos)
Atriz – Ih! Qualé, cara… Deixa o céu pras Amélias e Emílias que esse tipo de mulher já era!
Cantor ( animando-se) – Mas se você vier
pro que der e vier comigo
eu lhe prometo o sol – se o sol sair…
e a chuva – se a chuva cair…
Atriz – Tá pensando que eu nasci ontem, oh meu? Esse papo furado a gente já conhece… e não cola mais. Fui!… (Sai.)
Locutor – Bem, se você ainda não encontrou a sua, não se deixe tentar por novidades…mas também não desista! Vá traçando – quer dizer, testando – todas as que encontrar …(ao Cantor) Dizem que Oito Mulheres é um bom número:
Cantor: Pode falar meu bem
pode chorar se quiser
o homem não pode viver
somente com uma mulher.
Uma é pra dentro de casa
outra é pro meio da rua
uma é pra dia de sol
outra é pra noite de lua
uma é para o pensamento
outra é para o coração
uma é mulher de verdade
a outra é a inspiração !
Não é?…
(Ataulfo Alves)
Locutor – Enfim, você acaba conseguindo, nem que seja por cansaço e desistência: “Não tem tu, vai tu mesmo”… Ou então… ( passeia, ele próprio exibindo-se de certo modo, até uma desmunhecada sutil e expressiva) … quem não tem cão caça com… o gato. Há cada gato!… Sacou?…
Sai. Telão se acende sobre a imagem de um Deus indignado e um Diabo eufórico:
Deus – (voz off) – Sociedade de mercado!…Tudo se vende, tudo se compra, tudo é mercadoria!…
Diabo – Os homens estão progredindo, Senhor! Se continuarem neste rumo em breve o mundo será um inferno perfeito!
Deus – Mas o mundo está mudando, Lúcifer. E as mulheres e os homens também.
Diabo – Nada. Eles blefam, Senhor! Pega um machão: ele diz que aceita dividir as tarefas domésticas. Vai ver, a mulher está cuidando do bebê e ele… da babá!
Deus – E você acha que elas estão engolindo tudo ? Pois sim… Olha lá!
Figuras somem e entra o novo título:
Para quem acredita em Papai Noel
Música de abertura: Um programa de rádio: vinheta da Rádio Bandeira e trilha para o Locutor dar o seu Bom Dia.
Estúdio de uma rádio. Locutor, diante de microfone, voz empostada.
Locutor – Bom dia, ouvintes! Mais uma vez vai pelos ares a grande família da Rádio Bandeira, a minha, a sua, a nossa rádio, porque o Rio, hoje, só dá Bandeira!
BG de Apresentação.
– E sempre numa oferta de Pôncio Pilatos, o sabão que lava até dinheiro melhor que qualquer banco da Suíça, o sabão preferido de nossos homens públicos, o programa “Tribunos Livres” traz hoje para vocês um tema polêmico: a igualdade dos sexos! E para este espetacular debate nossa convidada de hoje é… a escritora Virgínia Golfe! Bom dia, Virgínia!
Virgínia – Bom dia, ouvintes. É um prazer estar aqui com vocês.
Locutor – Virgínia, você acredita mesmo nesse negócio de igualdade do homem e da mulher?
Virgínia – Claro que sim.
Locutor – Mas o homem e a mulher são tão diferentes! Você já viu uma mulher de carregadora de cais do porto?
Virgínia – Também nunca vi um homem parindo uma criança. E daí?
Locutor – Então… Até biologicamente são diferentes! O homem tem mais força, mais…
Virgínia – É a força que dá direitos? O elefante seria o dono do circo.
Locutor – Bem, em termos de direitos a lei é igual para todos.
Virgínia – Será…? Eu sou uma mulher: metade do gênero humano pode dizer isto sem ser contestada. Há ainda os dissidentes da outra metade que usam o mesmo rótulo. Ora, aquela metade e mais este grupo que a ela se juntou não participaram da feitura destas leis, não lhes deram qualquer aval quando foram feitas e não foram sequer convidados a se manifestar a respeito. Donde se conclui que…
Locutor – ( corta, abrupto ) Ora, não importa quem fez ou quem faz as leis!
Virgínia – Tá com medo da conclusão…?
Locutor – O importante é assinalar que as leis são igualmente aplicadas a todos os cidadãos, de qualquer gênero, masculino, feminino ou “dissidentes”.
Virgínia – “Igualmente…?” Hah! Só rindo! Quer um exemplo: se o homem tem uma, duas ou mais amantes, ganha medalha de machão: “Ele é fogo!”, dizem os amigos, babando na gola de admiração. Mas vai a mulher fazer o mesmo… O carimbo de adultério só bate na testa da mulher. Aliás, por falar nisso, já reparou que a palavra corno não tem feminino?
Locutor – Mas tem! Alguém já disse que o feminino de corno é esposa…
Virgínia – Claro…Que as esposas é que são as mais “corneadas,” desde os tempos de Zeus e Hera….
Locutor – Ora, todo mundo é inocente até que provem que é culpado. Isto é indiscutível. Somos um país livre. E as leis aqui são imparciais.
Virgínia – O Brasil…? Um “país livre”…? Com “leis imparciais”..?. Ah, sei! E… você ainda acredita em Papai Noel também?
Cantor se aproxima, dando uma de Assistente da rádio, e coloca um papel à frente do locutor. Ele lê e… o rosto se abre, sorridente e gozador:
Locutor – Ah, ah! Surpreendente, o primeiro telefonema de ouvinte, hoje! . E é diretamente para você, Virgínia. Imagine quem…? ( pausa) Você jamais adivinharia…Mike Tyson! É, Mike Tyson, em pessoa, telefonou… desafiando você para uma luta!
Ela – ( calma, sem hesitar) Diga a ele que eu aceito.
Locutor – Hein?!…
Ela ( repete, pausado) Diga a ele que eu aceito!
Locutor – Bem, caros ouvintes, agora os nossos comerciais, depois dos quais nossa ilustre escritora vai nos dizer como que pretende escapar ao desafio de Mike Tyson!
Vinheta . Entram em fundo os comerciais:
(Voz, off) Você que é um homem público importante, Pôncio Pilatos é o seu sabão! Se você roubou uma nação inteira, não se preocupe: a Justiça já lavou as mãos! Lave-se você também com o sabão Pôncio Pilatos e vá, limpo de responsabilidades e culpas, gozar a vida esquiando na Europa ou nas praias do Caribe!
Locutor (ao fundo) – Ficou louca? Viu a enrascada em que se meteu? Dizer, no ar, que aceita o desafio de… Não sabe quem é Mike Tyson, não é?
Ela – Sei. O campeão mundial de box.
Locutor – Então…? E você diz, no ar, pra milhares de ouvintes, que aceita um luta com um campeão do box ? Enlouqueceu, só pode…! Como é que…
Ela – Depois dos comerciais, não foi o que você disse? Então espere…
Vinheta de comercial e
Música- Cantora: Não me incomodo
de meter-me num embrulho
se a coisa ficar preta
eu também sou do barulho.
Eu já dei um bofetão
num velhote e num rapaz
qual não foi o meu espanto:
é que os dois queriam mais!
(Joubert de Carvalho, cantado por Carmen
Miranda)
Voz (off) – …Pôncio Pilatos, o sabão do homem de nosso tempo !
Locutor – E agora, queridos ouvintes, nossa Virgínia vai dar sua resposta a Mike Tyson, que a desafiou para uma luta. E aí, Virgínia? Vai lutar com o campeão de box?
Ela – Vou. E tenho certeza que ganho.
Locutor – (debochando) Ah, disso ninguém duvida, não é, amigos ouvintes…?
Ela – … porque, pelo que sei de desafios e duelos, quem é desafiado é que escolhe as armas, certo? A arma de Mike Tyson é o murro. A minha arma é a palavra. Portanto, aceito fazer um debate público com ele, aqui mesmo na rádio, sobre qualquer tema em que ele consiga algo mais do que morder orelhas…
Cantora (gozando) : Pode falar meu bem
pode chorar se quiser….
Luz fecha em resistência sobre o rosto estatelado do Locutor.
No telão, novo título:
Elogio do Adultério
ou
A Infidelidade ao alcance do todos.
Música – Cantor:
No seu corpo é que eu encontro
depois do amor o descanso
e essa paz infinita
no seu corpo minhas mãos
se deslizam e se firmam
numa curva mais bonita
e embora eu já conheça bem os seus caminhos
me envolvo e sou tragado pelos seus carinhos
e só me encontro e me perco
no seu corpo…
(Seu Corpo – Roberto Carlos)
Ele, sentado, lê um jornal. Ela se arruma com cuidadoso requinte: escova os cabelos, se maquila, escolhe brincos, etc. enquanto dialogam. Ao falar, ela exibirá forte sotaque estrangeiro.
Ela – Lucas…?
Ele – Que foi, Maggie?
Ela – O acordo que fizemos quando casamos, remember?
Ele – Acordo? Que acordo?
Ela – De ser um casal moderno, sem preconceitos, soltos, livres, vida
independente…
Ele, distraído, sem deixar o jornal.
Ele – Claro. Somos pessoas maduras, mentalidade arejada. Não vamos ficar presos a princípios antigos.
Ela observa com atenção a maquilagem, que retoca, examinando o rosto, para um lado, para o outro.
Ela – That’s it!. Fidelidade… nada a ver! Lealdade, sim: nada de hipocrisias, nem mentiras…
Ele baixa o jornal. Levanta-se. Aproxima-se dela, discursivo.
Ele – Claro. Isto de fidelidade é uma cretinice. Ninguém é fiel a ninguém. Uns mentem, outros omitem, mas de besteira: uma transa a mais ou a menos não faz a menor diferença. (abraçando-a) Pelo contrário, a variação às vezes até renova o apetite, quebra a rotina, estimula a ..
Ela ( animada e feliz, voltando-se para ele) – That’s right !.
Ele agora a olha, intrigado com seu ar e tom. Examina por um instante sua cuidada figura.
Ele – Mas… mas por que essa conversa agora? E essa animação toda?
Ela – É porque estou avisando você que… hoje vou sair com o Peter.
Ele – Hein…? Sair com… que, que Peter é esse?
Ela – Um rapaz lá do Consulado. Sabe, estou com saudade de fazer amor em minha língua. E ele… when I saw him I got really excited! Uma tesão, mesmo!
Ele – Hum… E é por isso que está aí há uma hora se embonecando toda?
Ela – Of course, my dear. Quero que ele também guarde uma boa recordação desta noite.
Ele – Hum…Peter…Será uma noite “inesquecível”, com certeza…
Ela – Well, we’ll see! By-ye!…
Ela sai. Ele só acena com a mão, sem responder.
Sozinho, olha em volta, pensando o que fazer.
Ele – Sete horas, só? Isso é lá hora de jantar? Só americano mesmo… (Pausa). Eu é que perdi a fome com essa babaquice toda… Vou é tomar uns whiskys… Lá pelas 10 horas ela deve estar chegando…Fazer amor em inglês… Qual! Maggie tem cada uma!
Luz fica no Cantor: Saiu só com a roupa do corpo
num toró danado
foi pro cafundó do Judas
apanhou um resfriado.
Voltou com a blusa rasgada
entrou, não disse nada.
Tô com dor de cotovelo
e com a cabeça inchada.
É de amargar, é de amargar,
mas ela é maior e vacinada.
Meu chapa,
eu caí das nuvens com cara de tacho,
essa nega tá pisando em mim,
essa não, não sou capacho.
Agora ando com a pulga atrás da orelha
A telha dessa nega tá avariada.
Nega sem modos,
só não chio e nem te dou pancada
porque você é maior e vacinada.
Se o amigo tem problema igual
não é conselho, mas olha :
fique sabendo que quem se mete a manda-chuva
quase, quase sempre é um chove-e-não molha.
Bem que eu queria dar com fé uma cacarecada
mas minha nega é maior e vacinada…
( Feminismo no Estácio- Aldir Blanc e João Bosco)
Reabre com ele diante de uma garrafa vazia, já meio de porre,
Ele – Pô…Três horas da manhã! E essa merda desse whisky que acabou… Agora eu fico fazendo o quê?… Maggie extrapolou, ah, extrapolou, sim!… Será que nem parou pra pensar que eu posso estar aqui, preocupado… (Levanta-se) Não é por nada, não, mas estamos em uma cidade violenta, cheia de assaltos, roubos de carros… Ela foi de carro?… Ou vai ver é ele que vem trazer, lá pelas tantas! E amanhã, o porteiro, os vizinhos vão estar me apontando: “Olha lá o corno!” … Ela com certeza nem pensou nisso… Falta de consideração!
Corte.
Reabre com ele agitado, mexendo ao acaso nas coisas em torno, já num porre total, acompanhando o cantor:
Música- Cantor:
…Mas enquanto houver força em meu peito
eu não quero mais nada
Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar
Você há de rolar como as pedras que rolam na estrada,
sem ter nunca um cantinho de seu pra poder
descansar!
(Vingança-Lupicínio Rodrigues)
Ele – Cinco horas!…Essa, não! E eu aqui, esmurrando as paredes! Não é pela trepada – isso claro que eu não me incomodo, trato é trato, eu também já fiz das minhas… Mas eu dou duas, três seguidas e esse gringo babaca vai ver brochou na primeira e ficou pedindo mais uma chance, “Be patient, my dear, um dia eu consigo!” Hah! (Pausa) Não vai ela se meter a fazer com ele as “brincadeiras” que eu ensinei! Seria uma traição! É, é por isso que eu fico me sentindo traído. Traído, sim! É traição o que ela está fazendo comigo: usar com esse filho da mãe as nossas brincadeiras, os nossos “aperitivos” e…
(Canta um verso, estropiadamente)
Ele – Vai ver eles agora estão… Aaaaah! Isso não, isso é sacanagem, é sacanagem comigo! (Outro tom) Pára de pensar besteira, pára de pensar besteira! (Suspiro) Mas que é esquisito, é, pensar que um babaca destes está botando a mão na minha mulher!
Fecha sobre ele ainda cantando …”Só vingança, vingança, aos santos clamar…”
Corte. Passagem de tempo com música de acalanto. Reabre sobre
ele dormindo sentado. Ela entra, saracoteante e alegre. Ele se ergue de um pulo.
Ela– Hello! Já acordado?
Ele– Sabe que horas são, sabe? Oito horas da manhã!
Ela– Por isso eu achei estranho você já acordar.
Ele– Preocupado com você! Preocupado com você, não vê?
Ela em movimento, pondo a bolsa a um canto, penteando os cabelos com as mãos, etc. Ele girando em torno, buscando colocar-se à sua frente.
Ela – Mas…mas eu avisei que ia jantar com Peter…
Ele – Jantar com Peter e “fazer amor na sua língua…” Duas, três horas, no máximo! Não disse que só ia chegar no dia seguinte!
Ela – Ah! Mas se você visse…
Ele – Se eu visse…?!
Ela – …Ele é tão carinhoso, so sweet… Nós conversamos e trepamos, descansamos, trepamos de novo…Aprendi uma nova que vou te ensinar: a cascatinha! Imagina que ele pingou vinho no meu umbigo e…
Ele – Não quero saber!!
Ela – Mas você sempre me contou as suas: Fulana é fria, Beltrana é um vulcão…Aquela do orgasmo múltiplo, remember: “Pára, senão eu morro!” E aquela outra que ria sem parar quando fazia cavalinho…
Ele – Ah, saquei! Você fez de vingança, não foi? Pura vingança! Peter, tesão… Vai ver não tem nem Peter nenhum! Você foi é dormir no hotel da esquina e agora está inventando uma transa só pra me… só pra.me..
Ela – Inventando…?! Eu apresento ele a você.
Ele – Pra ele ficar olhando pra minha testa e me gozando…?!
Dá as costas e se afasta. Ela o segue.
Ela – Eu não entende você. Vive dizendo: “Ciúme é coisa de criança”, “Relação madura não tem posse!” “Ninguém é objeto de posse do outro!” E agora está aí, arrancando os cabelos porque…
Ele – Não estou arrancando coisa nenhuma! Estou só…Sabe o que mais ? Eu não devia ter consentido neste… nesta babaquice!
Ela estaca.
Ela – “Consentido”…? Enlouqueceu ?!
Ele – Não, Maggie. É que eu conheço você. Conheço as mulheres. Afinal, tenho anos de calçada. Mulher é diferente de homem: homem transa e no dia seguinte não sabe nem o nome da mulher mais. Tenho um amigo que teve 365 mulheres em um ano! 365: um Recorde Olímpico! Hoje, ele vê os nomes na agenda e não lembra nem a cara! Vocês, mulheres, não… Se envolvem, “he is so sweet”… Ficam fantasiando, todas melosas, românticas, imaginando coisas… Espero só que esse tal de Peter não cole no teu pé nem pense que eu vou consentir que…
Ela – Você “consentir”…? Outra vez…? Essa não! (dá as costas e vai saindo)
Ele – Maggie! Espere! Eu…espere…!
Corta para a Cantora :
Ninguém pode calar dentro de mim
esta chama que não vai passar
é mais forte que eu
e não quero dela me afastar
eu não posso explicar como foi
e nem como ela veio
e só digo o que penso
só faço o que gosto
e aquilo em que creio.
Se alguém não quiser entender
e falar, pois que fale,
eu não vou me importar com a maldade
de quem nada sabe
E se a alguém interessa saber
sou bem feliz assim
muito mais do quem já falou
ou vai falar de mim.
( Resposta – Maísa)
No telão, reaparecem Deus e o Diabo.
Diabo– Este round foi meu, Senhor! Reconhece os argumentos dele, essa dupla moral? Atualíssima! Não há homem que não conheça este jogo!
Deus – Hipocrisia, Lúcifer. É isto que a ideologia machista é: hipócrita.
Diabo – Isso não há como contestar….
Deus – Mas a mulher de mansinho tá abrindo seu espaço… Pergunte a D. Ivone Lara…
Luz fecha sobre telão e passa à Cantora :
Eu vim de lá, eu vim de lá
pequenininha
alguém me ensinou pra pisar neste chão
devagarinho…. (bis)
Sempre fui obediente
mas não pude resistir
foi numa roda de samba
que eu juntei-me aos bambas
pra me distrair
quando eu voltar pra Bahia
terei muito que contar
oh padrinho não se zangue
que eu nasci no samba, não posso parar.
Foram me chamar
eu estou aqui, o que que há….(bis)
No telão, título:
O repouso do guerreiro
Homem entrando em casa.
– Ne-ly !…
Pausa. Nenhum som. Ele começa a circular, procurando: ninguém. Ele pára no meio da cena, irritado.
– Nely…? Pô, será que ela ainda não chegou? Que é que ela pensa da vida, agora vai morar no trabalho só porque virou chefe?
Ela, entrando esbaforida.
Ela – Oi, Diogo! Nossa, como eu corri! No meio da reunião me lembrei que você estava de serviço hoje à noite. Tiro já, já o jantar.
Ele – Que é que tem pro jantar?
Ela – Carne assada com batatas coradas e…
Ele – De novo?! Semana passada, se não era carne assada, era bife. Tá programando em computador?
Ela – Calma. Eu faço uma omelete de queijo pra acompanhar.
Ele – Não, deixa, vou sem comer mesmo. Ou como na rua.
Ela – Não faz drama, Diogo. É num instante!
Ele – Estou cansado de comer comida requentada !
Ela – Micro-ondas não é comida requentada.
Ele – Micro-ondas dá câncer!
Ela – Quem disse?!
Ele – E você sabe que eu detesto chegar e não te encontrar! Ligo pra casa vinte vezes…e nada! Já me sinto tendo um caso com a secretária eletrônica!
Ela – Que é que você quer? Que eu largue as aulas no meio, o trabalho sem terminar…
Ele – Não, continua!Continua até se arrebentar! Que ser professora no Brasil é puro masoquismo.
Ela – Eu gosto.
Ele – Por isso mesmo que é masoquismo!
Ela – Por quê? Por que o salário não existe? Ou porque…
Ele – (corta) Ora, porquê, porquê. Mania de perguntar porquê! Ainda não ensinou a seus alunos que isto não se faz?
Ela – Que é que você quer afinal, ahn?
Ele – Que você não aterrisse apenas em casa e logo saia voando de novo! Eu avisei: não aceite esta chefia, este bando de veados quer é te explorar!
Ela – Explorados todos nós somos, inclusive você! Mas nós precisamos deste salário.
Ele – Salário…! Uma “esmola” que nem mendigo quer! Não compensa a bagunça que fica esta casa, as crianças jogadas por aí, ameaçadas de… de serem até seqüestradas!
Ela – (rindo) E quem é louco de seqüestrar filho de sargento e professora? Iam pagar com quê? Com a pose de se julgarem “classe média”? Ora!… E as crianças não estão jogadas. Quando chegam já têm idade suficiente pra saber trocar de roupa e ir brincar. Espera aí, não demoro.
Ela sai. Ele liga rádio ou põe CD, senta-se e fica ouvindo, emburrado, enquanto engraxa as botas.
Cantora – Com açúcar, com afeto
fiz seu doce predileto
pra você parar em casa
Qual o quê…
Com seu terno mais bonito
você sai, não acredito
quando diz que não se atrasa
Você diz que é operário
vai em busca do salário
pra poder me sustentar
qual o quê…
No caminho da oficina
há um bar em cada esquina
pra você comemorar sei lá o quê…
Cantor: Quando a noite enfim lhe cansa
você vem feito criança
pra chorar o meu perdão
Qual o quê…
Diz pra eu não ficar sentido
diz que vai mudar de vida
pra agradar meu coração
E ao lhe ver assim cansada
maltrapilha e maltratada
ainda quis me aborrecer
qual o quê..
Cantora : Logo vou esquentar seu prato
Dou um beijo em seu retrato
e abro meus braços pra você.
( Chico Buarque )
Ela retorna, blusa trocada, trazendo uma bebida pra ele, que recusa.
Ele ( provocando de novo) – Esta casa é um lugar em que eu viveria muito bem… se fosse louco.
Ela – O quê?!… Deus teria vergonha do paraíso se conhecesse nossa casa!
Ele – Ou o diabo mais um meio de levar gente pro inferno !
Diabo (só Voz ) – Ih, Senhor, nos botaram no circuito…
Deus ( só Voz ) – Quieto, Lúcifer. Você não pode interferir.
Ele – Sua sorte é que eu sou um sujeito compreensivo…
Ela – Quem acredita nisso?
Ele – … e responsável…
Ela – Meu Deus!…
Ela – Se eu também resolver reclamar…
Ele – Eu não estou “reclamando”! Mas até teria de quê! Uma mulher que tem casa, marido e filhos não pode por o trabalho acima de tudo!
Ela – ( parando à sua frente) Eu não ponho o trabalho acima de tudo! Mas por que você pode entrar e sair de casa à hora que quiser, e eu tenho que ficar aqui, para atender Vossa Senhoria quando chega…?
(Ele não responde, ar “muito digno“. Pausa)
Ela – No Primeiro Mundo, que você vive citando, o marido divide com mulher as tarefas domésticas, sabia?
Ele – Mas eu não vivo lá, vivo aqui.
Ela – Ai, meu Deus!
Voz ( Diabo) – Essa mulher não larga do teu pé, hein, Senhor?
Ela – E vir correndo pra quê? Pra encontrar você grudado na minha rival?
Ele – Sua rival…?!
Ela – É, a TV! Qualquer dia eu jogo essa TV pela janela! Ou boto um anúncio no jornal: troco uma TV usada por um marido novo!
Ele – Você está perdendo o juízo!
Ela – Estou perdendo é a paciência!…Casamento não devia ser celebrado diante de um altar e sim diante de uma pia de cozinha…E cheia de louça!
Ele – Daqui a pouco vai querer que eu lave minhas cuecas, varra a casa…
Ela – E por que não? Se não podemos pagar nem uma diarista mais! O homem moderno, hoje, aqui no Brasil mesmo, também cuida da casa e dos filhos. E não vira veado por isso, sabe?
Ele – Ah, fingem. Lavam o prato em que comem e pronto! Eu já me esfalfo no trabalho fora, pra dar tudo que vocês precisam…
Ela – Ah, coitadinho!… Eu também trabalho fora, sabia?
Ele – Porque quer.
Ela – Sem o meu trabalho nunca teríamos comprado este apartamento.
Ele – Sem essa! Com mais um tempo eu comprava sozinho!
Ela – Duvido!
(Pausa)
Ele – Sabe que mais? Cansei de fazer papel de idiota! Além das turmas, agora esta chefia de merda! Se você continuar nisso…
Ela – Não tenha dúvida, que vou!
Ele – (tom pomposo) …eu saio fora!
Voz ( Diabo) – Essa não fui eu, hein, Senhor!
Ela – Ai, meu Deus!
Voz ( Diabo) Agora é ela que ‘tá apelando. Mas o Senhor não deve interferir, não é?
Ela – E aquele consultor sentimental que diz que a discussão é o laxante do
casamento…Pois sim!
Ele – Te dou uma última chance: é pegar ou largar!
Ela de costas, sem responder.
Ele – (vitorioso) Se não, volto pra casa de meus pais!
Música : Mamãe estou tão feliz
porque voltei pra você
alguma coisa me diz
que hoje eu volto a viver
Fico feliz a teu lado
viver distante porque…
Mamãe…!
( Mamãe – Aguinaldo Timóteo)
Ele – Depois… vou à vida! Vou ter um bando de namoradas, todas me paparicando… e eu só ali, numa boa!
Ela – ( voltando-se, súbito) Então vai…! Vai e procura outra que nem tua mãe ! Ah, Freud, essa você deu na cabeça!
Ele – (engasgando) Não meta minha mãe nisso! Mãe é mãe! E é sagrada!
Ela – “Sagrada”…? Um burro de carga de toda a família, lavando, passando, cozinhando, arrumando, sem um minuto de descanso, sem ter o trabalho dela reconhecido, vocês todos só exigindo, cobrando… Pois sabe o que eu ouvi dela, de sua mãe mesma? “Nunca largue seu trabalho, minha filha, que ser dependente é a coisa mais triste que há!”…
Ela – Minha mãe nunca diria uma coisa destas!
Ela – Pois disse! Vá lá e pergunte a ela!
Saem, um pra cada lado. Corte de luz.
Título no telão:
Caso de vida e morte
Luz sobre Cantor:
Sentimental eu sou
eu sou demais
eu sei que sou assim
porque assim ela me faz
e as músicas que eu vivo a cantar
tem um sabor igual
por isso que se diz
como ele é sentimental
romântico a sonhar
e eu sou assim
cantando essas canções
pra quem ama igual a mim
e quem achar alguém como eu achei
verá que é natural
ficar como eu fiquei
cada vez mais sentimental.
( Jair Amorim/ Evaldo Gouveia)
Mulher dormindo. Telefone toca. Do outro lado da cena, homem sentado, telefone ao ouvido.
Ela – ( sonolenta) Alô…
Ele – (bem desperto) Oi!
Ela – Ahn… É você, Paulo César?
Ele – Ih, acho que te acordei…
Ela – Anda, fala de uma vez… A que horas foi o… o grande evento? A performance única e exclusiva, sem direito a repeteco?
Ele – Hein?!
Ela – A que horas ela morreu?
Ele – Quem foi que morreu?
Ela – Tia Licinha. É por isso que você está me ligando a esta hora da madrugada, não é? Aliás, que horas são?
Ele – Eu tô sem relógio.
Ela – Pra variar. Desde que você foi assaltado e perdeu aquele Rolex falsificado nunca mais andou de relógio. Olha, no camelô tá baratíssimo, vê se compra um logo, tá?
Ele – Tá. Mas escuta…
Ela – Aí no hospital deve ter gente pra informar a que horas Tia Licinha morreu. (Pausa) Paulo César, tá me ouvindo?
Ele – Tô sim, é que…
Ela – Olha aqui, primo, eu sei que você tá nervoso, mas agora não adianta mais. Você fez tudo que podia, mas é que chegou a hora dela. Partiu desta pra melhor e agora deve estar com os anjos. Era uma santa senhora!! ( de lado ) Uma boa filha da puta, isso sim !
Ele – Nossa, que exagero.
Ela – É você quem está dizendo, Paulo César, não eu. Afinal a mãe é sua, é você quem sabe, não é? ( Pausa) Está me ouvindo, Paulo César?
Ele – Perfeitamente, prima. Não precisa gritar.
Ela – Desculpe. É que fiquei nervosa, nem sei porque. Afinal a gente já estava esperando pelo pior, não é? Um mês de CTI! Você quer que eu tome as providências?
Ele – Providências…?
Ela – Do enterro, primo. Quer que eu avise os parentes, os amigos? Mas acho melhor esperar amanhecer, não é mesmo? Também a gente precisa saber mais detalhes, tipo hora do enterro, cemitério, esse tipo de coisa. Que é que você acha?
Ele – Eu não acho nada…
Ela – Eu sei que você está desorientado, primo. Olha, eu tinha muita raiva da Tia Licinha, mas mesmo assim aceite meus pêsames, de coração, ouviu? Eu sempre quis muito bem a você, Paulo César. Desde que a gente era criança.
Ele – Eu não esperava uma dessa. Obrigado.
Ela – De nada. Por que é que as pessoas sempre resolvem morrer de madrugada? Deve ser porque nascem de madrugada também. Pra aporrinhar bastante os médicos e os parentes. Aliás, que horas são, hein?
Ele – Não sei, já disse.
Ela – Desculpe. Você está sem relógio. Mas será que aí no hospital não dá pra você ver a hora ? Uma dessas enfermeiras de plantão deve ter um relógio.
Ele – É que… eu não estou no hospital.
Ela – E você está onde?!
Ele – Em casa.
Ela – Eu não acredito!… Eu realmente não acredito! Você está em casa e deixou o corpo da pobre Tia Licinha no hospital!
Ele – Ninguém pode sair do hospital com um cadáver a tiracolo.
Ela – Mas você é mesmo um filho desnaturado, Paulo César!
Ele – Eu não sou o Paulo César.
Ela – Ah, não…? Então…você é quem?
Ele – Pode me chamar de… de.. Solitário.
Ela – Chamar de quê…?!
Ele – Solitário.
Ela – (de lado) Solitário… Que apelido mais cafona… (para ele) Mas como é que você tem a ousadia de me telefonar pra me dizer que a pobre da minha tia, aquela santa senhora que nunca fez mal a ninguém….como é que você, Solitário, ou sei lá que nome tenha, tem a petulância de me ligar pra me dizer que minha tia morreu, hein?
Ele – Só que eu não falei nada. Quem falou foi você.
Ela – Eu???!!!
Ele – Claro. Eu ligo e você começa a falar, a me chamar de Paulo César e…
Ela – É demais, é demais! Eu não acredito. Olha aqui, oh…
Ele – Pode me chamar de Paulo César, se quiser. É um nome bonito.
Ela – Eu não vou chamar você de nada. Vou é desligar. Você me telefona de madrugada, me acorda, me dá a notícia da morte de minha tia…
Ele – Ei, pera aí…
Ela – (sem ouvir)… e nem esta boa notícia é verdade! Aquela miserável ainda está viva, e acabando com a família toda! Gastou tudo que pôde, nunca fez um favor pra parente nenhum, um egoísmo só! A gente aqui numa luta danada, agüentando um aluguel que subia a toda hora, enquanto aquela vaca ia pra Europa com o português que ela arranjou…
Ela – Bem, pelo menos ela aproveitou, né…?
Ela – Ah, nem sei por que estou falando essas coisas pra você.
Ele – Nem eu…Mas, escuta…
Música. (enquanto os dois atores permanecem na penumbra em mímica de
conversa)
(Cantor/ cantora) Quem é você
Adivinha, se gosta de mim
hoje dois mascarados
procuram os seus namorados
perguntando assim:
quem é você, diga logo
que eu quero saber
que eu quero saber o teu jogo
que eu quero morrer no teu bloco
que eu quero arder no teu fogo
Eu sou seresteiro, poeta e cantor
o meu tempo inteiro só penso no amor
Eu tenho um pandeiro,
só quero um violão
Eu nado em dinheiro,
não tenho um tostão
Fui porta-estandarte
não sei mais dançar
eu modéstia à parte
nasci pra sambar
Eu sou tão menina
Meu tempo passou
Eu sou Colombina
Eu sou Pierrot
Mas é carnaval
não me diga mais quem é você
Amanhã tudo volta ao normal
deixa a festa acabar
deixa o barco correr
deixa o dia raiar
que hoje eu sou
da maneira que você me quer
o que você pedir eu te dou
seja você quem for
seja o que Deus quiser. (bis)
(Chico Buarque)
Ele – Escuta: não dá pra gente se encontrar? Pra…conversar melhor?
Ela – Ah, de repente… Tive uma idéia: você me dá seu telefone. Eu te ligo muito breve.
Ele – Você não vai me ligar, que eu sei.
Ela – ( ar de enfado) Vou, sim. Claro que vou. (anima-se) Eu te ligo pra dizer que minha tia morreu! No CTI, pô ! Tem que estar embarcando – mesmo que o diabo já esteja trancando as portas do inferno pra ela!
(Gargalhada do Diabo ecoa em fundo)
Ele – Mas eu nem conheço sua tia.
Ela – Por isso mesmo. A gente se encontra no cemitério. Junto do caixão dela. E aí, eu vou estar com você. E aquela desgraçada vai saber que a morte dela serviu ao menos pra alguma coisa!
Ele – Bom…tá legal. Tá com caneta aí?
Ela- (sem se mover) Hum, hum…
Ele- Meu telefone é 273-0000. Meu nome é Mauro. E o seu?
Ela– Nilcéia. Mas agora eu vou me despedir que eu tô morta de sono. Um beijo, tá?
Ele – Prefiro pessoalmente. Mas por agora, outro. Tchau.
( Vai desligar quando ainda ouve a voz dela)
Ela – Ei, Mauro…
Ele – O que é?
Ela – Não vai ficar ligando pra tudo quanto é mulher agora, que já é tarde. E olha: teu nome não é mais Solidão, que agora você me encontrou….
(Desliga com ar gozador e irritado, enquanto ele do outro lado abraça o telefone, feliz)
Luz fecha sobre os cantores:
Fica comigo esta noite
e não te arrependerás
Lá fora o frio é um açoite
Calor aqui tu terás
Terás meus beijos de amor
Minhas carícias terás
Fica comigo esta noite
E não te arrependerás
Quero em teus braços, querida
Adormecer e sonhar
Esquecer que nos deixamos
Sem nos querermos deixar
Tu ouvirás o que eu digo
E eu ouvirei o que dizes
Fica comigo esta noite
Então seremos felizes.
( Adelino Moreira /Nelson Gonçalves )
Agora a aposta é dos cantores, cada um de seu lugar:
Ele – E você, em quem você aposta?
Ela – Nela, é claro!
Ele – E eu, nele! Então, par ou ímpar?
Ela – PAR! Que na Natureza tudo é par: o céu e a terra, o Sol e a Lua, o dia e a noite, o claro e o escuro, o masculino e o feminino… Portanto, pra mim, é PAR!
Ele – E pra mim é ÍMPAR, sempre. Sendo ímpar eu posso fazer par com quem eu quiser, mudar de par à vontade…Além do que, eu sou mais eu, aposto é em mim mesmo, ímpar, inigualável, o rei da criação…Sou ou não sou ?
Ela – Ah, é? Então vamos ver…Um, dois três e …já !
Corte de luz. No escuro:.
Diabo (Voz) – Hei !…Quem foi que apagou a luz? Senhor, isto é um golpe baixo, indigno de uma Divindade! Quem ganhou este par ou ímpar? Eu quero saber! Eu preciso saber! Isto é importante para a minha aposta!
Deus – Calma, Lúcifer… Ainda não terminamos.
Quando um par vira ímpar
Música : Tudo acabado entre nós
Já não há mais nada
Tudo acabado entre nós
Hoje de madrugada
Você chorou, eu chorei
Você partiu, eu fiquei
Se você volta outra vez
eu não sei
Nosso apartamento agora
Vive à meia luz
Nosso apartamento agora
Já não me seduz
Todo o egoísmo veio
veio de nós dois
destruímos hoje
o que podia ser depois
( J.Piedade e Oswaldo Martins)
Ruído de louça quebrada. Abre sobre casal em trajes caseiros: ele imóvel, calado, diante de uma pilha de pratos iguais. Ela falando desbragadamente:
Ela – Pô, foi a maior sacanagem você ter quebrado este prato, cara. ( o homem faz um gesto com a mão, como se quisesse dizer algo, mas ela continua) Não, não me interrompa, não. Que foi, foi. Tudo bem, a gente tá dividindo as coisas, quando se separa é assim mesmo. Mas nem por isso você tinha que tomar esse tipo de atitude. Só porque não dá pra dividir onze pratos ao meio? (Ela respira fundo, ele tenta interromper, ela não deixa) Deixa eu acabar de falar…mania de ficar interrompendo! Foi maldade mesmo, e não adianta inventar desculpas. Quebrar um prato de louça cara só pra me sacanear…Viu o que você fez? Agora eu fico só com cinco e você fica só com cinco e nenhum de nós fica satisfeito. (suspira) Pois é. É isso aí. Deixa pra lá ( Ele sente a pausa e investe, ela corta ) Espera, vamos resolver os discos. Pode levar o Wagner inteiro, mas deixa o Chico pra mim.
Cantora: De todas as maneiras que há de amar
nós já nos amamos
(cantarola junto) com todas as palavras feitas pra sangrar
já nos cortamos…
(Chico Buarque)
Ela – ( cantarolando ainda um verso) Eu adoro o Chico! (ele tenta dizer alguma coisa, ela corta) É uma divisão justa! Você gosta dos dois e eu odeio o Wagner. Então leve suas Valquírias. Por falar nisso, essa piranha com quem você anda saindo, ela se chama Valquíria, não é? (Ele olha pro lado, evitando encarar ou responder; ela olha com raiva e continua) Quer ir separar os livros? (pegando uma pilha) Olha, eu já até pensei no assunto. Você leva a sua adorada Agatha Christie, mas deixa o Vinícius pra mim… Ah, não me olha com essa cara, não. “Que seja infinito enquanto dure”. Pois é, mas já não está durando, então larga o Vinícius.
(cantarola) Ah, se soubesses no momento
todo o arrependimento
como tudo entristeceu…
E você sempre achou poesia uma babaquice, então deixa o Vinícius, o Drummond e o Quintana aí. (arrancando-lhe das mãos uns livros que ele pegara. Ele sorri, ela também) Parece que a gente tá se entendendo,né? (confidencialmente) Quer que lhe diga: achei que ia ser pior… Bom, então aqueles leões de Cingapura ficam pra mim. Em compensação, você pode levar as taças de cristal. (Ele esboça um gesto de protesto, tenta falar, chega a emitir um som qualquer, mas ela corta). Você sempre achou elas elegantes, pra mim elas são cafonas. Sempre achei cafonas e convivi anos com elas! (Ele tenta mais uma vez protestar). Não, não adianta protestar. Não dá pra dividir meio a meio, que nem os pratos. Essas coisas fazem par. Nós dois já não fazemos mais um par, mas os objetos não têm nada com isso. Olha só, você ainda leva aquela estatueta de marfim que eu ganhei de minha avó. Fica de brinde. Você sempre achou linda, já eu não ligo, fica pra você, pronto! ( Ele sorri, desalentado.Ela olha pra ele, sem saber muito bem o que dizer, depois adota tom de vendedor de loja de eletrodomésticos. Mas está ainda irritada, se vê). Bem, agora vamos aos objetos maiores. Você leva a televisão da sala (respira fundo e assume postura mais descompromissada) eu fico com a do quarto (ele não protesta, até sorri). Eu sou louca por filmes, você não liga, dormia sempre no meio… (Ele não reage. Quer dizer, se você não se importar, eu fico com o vídeo. Mas você pode levar o som: o vídeo e o som devem valer mais ou menos a mesma coisa, os dois foram comprados na mesma época – aquela viagem, lembra? (Ele não fala nada Ela hesita um pouco, a voz meio embargada). Acho que…que é bom negócio, pra você e pra mim. Depois eu compro outro som. (Ele se afasta. Ela fica mais aliviada e continua) Acho que você não vai querer as panelas, não é? Nunca foi de cozinhar, come sempre um sanduíche quando eu não estou perto pra fazer seu jantar… Enfim… (Vai em direção a ele) Mas acho que vai querer levar a geladeira, não é? (Ele assente com a cabeça) Tudo bem, eu me ajeito com o freezer, por enquanto. (Ele continua sem reagir. Ela se aproxima e pára diante dele) Você vai querer mais alguma coisa? (Ele não responde. Ela perde a calma e toda a sua estrutura desaba) Responde, porra! (Ele a olha, espantado e arrasado) Leva tudo que você quiser, mas não faz essa cara, que eu não agüento! (Ele recua, cada vez mais espantado, enquanto ela prossegue, num crescendo) Não fica aí me olhando com essa cara de cachorro que apanhou… Quem falou em separar foi você, não foi? Então leva tudo, a cama, o colchão, o ventilador de teto, o sofá, o computador, a mesa de centro… e me leva junto também, que eu não agüento ficar sem você!
Cantora (Eles ficam abraçados, dançando e trocando carinhos)
Ai, meu amor não vá embora
vê a vida como chora
vê que triste esta canção
Não, eu te peço não te ausentes
pois a dor que agora sentes
só se esquece no perdão
Cantor: Ah, minha amada me perdoa
pois embora ainda te doa
a tristeza que causei
Eu te suplico não destruas
tantas coisas que são tuas
por um mal que já paguei
Ah, minha amada se soubesses
da tristeza que há nas preces
que a chorar te faço eu
Se tu soubesses no momento
todo o arrependimento
como tudo entristeceu
Cantora|: Se tu soubesses como é triste
eu saber que tu partiste
sem sequer dizer adeus
Juntos: Ah, meu amor tu voltarias
e de novo cairias
a chorar nos braços meus!
(Apelo– Vinícius / Baden Powell)
No telão, os “espectadores”:
Deus – E aí, Lúcifer? Este que você dava como certo… e eu que ganhei no final.
Diabo – Calma, Senhor, a cena ainda não terminou. Olha lá…
(Ele e ela ainda abraçados)
Ele – Você que é muito precipitada e veio com essa de separação.
Ela – Não fui eu…foi você!
Ele – Foi você…
Ela – Mania de me culpar por tudo! Foi você!
Ele – Ai, começou!… (Afastam-se, saindo um pra cada lado)
Diabo – Está vendo, Senhor? O ser humano é demente, maluco de todo, não acha? É por isso que eu digo: não vão se entender nunca…
Deus – Mas o que é “se entender” pra você? É não discutir, nem divergir nunca? Ou se amarem, apesar disso?
Diabo – Ora, se amarem, se amarem….
No telão, título:
Quando um ímpar vira par
Música -Cantora: Me lembro daqueles tempos
quando a gente namorava
no portão da casa, no portão da casa
Ah, era aquele namorinho
safadinho, bonitinho
muito bem agarradinho no portão
Meu bem por dentro
e eu pelo lado de fora
ele dizia tá na hora
e eu, não, não!
Nosso namoro era xodó beleza
uma fogueira acesa
dentro do meu coração…
. (Elba Ramalho)
Mulher de uns 70 anos veio entrando com uma mala, que põe de um lado e abre, começando a zanzar pelo aposento: roupas e objetos diversos, espalhados, que ela irá separando e arrumando na mala.
Pára no meio da cena:
– Quando eles chegarem e eu anunciar minha decisão, já sei o que é que vou ouvir: a cara de assombro de Marisa, “Ficou louca, mamãe?” e o ar de deboche de meu genro, “Na sua idade, D. Rosa?” Na minha idade… Na minha idade, sim, por que não?…
Volta aos arranjos.
– E Marisa vai continuar: “Deixa ela em paz, Reinaldo. Não vê que é brincadeira, que ela tá é curtindo com a cara da gente?” Gozado, se é ele que fala, leva a sério. Comigo, é brincadeira, caduquice.
Dirigindo-se a casacão pendurado em um cabideiro de pé.
– Pois eu vou e digo a ele: estou falando é com minha filha e sua opinião, se quer saber, não me interessa nem um pouco! Que eu já estou por aqui com você! Desde a primeira vez que vi sua cara pensei: que foi que minha filha viu nesse traste? E o tempo só fez confirmar minha impressão, porque você… Ih! Melhor eu calar minha boca, senão…
.
Dá as costas ao casaco. Afasta-se. Recomeça seu trabalho e seus gestos de arrumação, que marcam a inflexão e o tom das falas.
– Mas aí vão começar as perguntas: “E quem é ele? E onde é que a senhora conheceu esse cara, mãe?” E isso agora interessa? Que diferença faz se eu encontrei ele pendurado num poste da Light ou numa prateleira do supermercado? (desaforada) Encontrei ele num bordel, pronto! Parece que bebe, esta minha filha… Onde é que os velhos como eu podem ir, com esta idade e esta aposentadoria do INPS que temos? Só até a praça, mesmo!
Pára, lembrando.
– Sentar num banco da praça e ficar lá, olhando pro tempo… ou dando comida aos pombos. Acho que foi pra isso mesmo que Deus criou os pombos, pra que velhos como Feliciano e eu possamos nos distrair jogando migalhas de pão pra eles…Porque Deus, que é muito sabido – por isso mesmo que é Deus – já sabia das safadezas que os governos aprontam com o dinheiro da nossa aposentadoria e com as filas que nos fazem enfrentar nos bancos, nos hospitais e com tudo mais que nem vale a pena lembrar, de tanta raiva que dá!
Pausa
– Mas como é que eu vou explicar pra eles?
Música suave: A mesma praça, o mesmo banco
(sem letra, só “clima”) As mesmas flores, o mesmo jardim…
Foi num banco de praça que nos conhecemos. Quando as migalhas de pão dele se acabaram e os pombos, que estavam bem pertinho, continuaram esperando… e ele… os olhos dele levantaram pros meus no banco ao lado e… e eu entendi o pedido deles… e fui me sentar ao lado dele… e começamos a conversar…
E entra dia e sai dia, os pombos sempre ali e nós também, conversando… conversando… (outro tom) Velho precisa falar, mas quem é que dá atenção a velho nessa terra?… E de conversa em conversa, o carinho foi chegando…
Close de seu rosto, feliz, iluminado. Cai em si. Música cessa.
– Aí minha filha vai tornar a dizer: “Na sua idade, mãe? Isso é ridículo!”
(encrespando-se de novo) Ridículo, por que? Que é que tem a minha idade? Já morri, por acaso? Então, que é que tem a minha idade? É muita?…E a tua era pouca quando se envolveu com esse estafermo do teu marido e eu não falei nada! Foi ou não foi?…Então…? Não vai querer que eu também espere 5 anos pra casar… que nem ele nem eu temos mais tempo pra isso….Na nossa idade, cada dia já é lucro, a morte tá aí mesmo, de olho na gente…
Pegando algo que vai enfiando, com roupas e outras coisas, na mala.
– Aí ela vai desandar a chorar – que Marisa pra chorar tá sozinha. Qualquer coisa é aquele berreiro, desde criança. Pelo menos agora não se enfia mais debaixo da cama… Mas sei que ela vai se derramar: “Ah! Se meu pai visse isso!” Claro que ele não pode ver, ele já morreu há… sei lá quantos anos, são tantos que até perdi a conta… E, além disso, seu pai, Marisa – que Deus o tenha – era bom, honesto, trabalhador… e só! Que no resto…Feliciano dá de dez a zero!
Ri, ar subitamente moleque.
– Ela vai ficar horrorizada de ouvir isso e vai achar que nós…Ah, tá pensando o que? Que ficamos só olhando as nuvens?… Hah! Mas ela vai é dizer que eu estou maluca de todo…
Tira o casaco do cabide e começa a dobrar.
– A verdade é que… a verdade é que me sinto como um estorvo nesta casa, que nem minha é. Feliciano também está sozinho, mas foi mais esperto que eu: não deixou venderem seu apartamento e comerem o dinheiro da venda. Mas ele se sente só, como eu…
Falamos horas e horas e eu sinto, e ele sente, que é bom quando estamos juntos. Não é uma paixão enorme…Somos dois velhos que precisamos um do outro, que podemos ser úteis um ao outro…Vocês não sabem que alegria é para um velho se sentir útil…Dá uma felicidade! E ser feliz nesta idade, do jeito que velho é tratado aqui, e com essa aposentadoria que recebemos… é muito raro, difícil, mesmo.
Ela acabou de pôr suas coisas na mala, que fecha. Joga sobre ela o casaco. Ajeita os objetos que ficaram.
– Portanto, não se preocupem. Eu aqui passo quase o dia todo sozinha… vocês no trabalho, as crianças na escola…Com ele vai ser diferente. Ele é carinhoso, paciente. E eu vou ter de quem cuidar, e uma casa só minha para arrumar e alguém com quem sair, de braço dado para passear…
Falando para a distância.
– Filha, você não sabe o que representa, para mim, na minha idade, ter o calor do corpo de um homem, os pés aquecidos pelos dele… receber um carinho sem ter que pedir… Porque vocês… vocês me desculpem, mas … dão um beijo, um agradinho de passagem, distraído, perguntam: “Como vai?”, eu respondo:”Vou indo!” e vocês não querem nem saber indo pra onde!
Pega a maleta, põe mais junto à saída.
– É natural, são jovens, têm a vida de vocês… Mas eu também tenho direito de ter um homem a meu lado, um homem que me queira…e encontrei um! Ou você pensa que homem só serve para… e na minha idade isso não conta mais? Pois conta, sim, e cada idade tem seus usos e recursos e pode ser tão bom quanto…Ih! Chega, eu lá vou eu de novo falando o que não devo e deixando eles de boca aberta de espanto!
Pega a bolsa. Abre. Confere.
– Identidade. Documentos. Tá tudo aqui.
Ar interrogativo e semi-sorriso de quem ouve ainda uma interpelação.
– Casar no papel…Vão perguntar, com certeza. Que papel, que nada! Ah, esses que se dizem muito modernos e depois…Tem papel nenhum, a gente lá precisa de papel a essa altura da vida! (em crescendo) Vou pra casa dele, morar junto, mais nada. Dêem o nome que quiserem! Que eu vou mesmo, quer vocês queiram, quer não! Sou maior, vacinada, viúva, tenho minha pensão e…
(voz se quebra ) … e não aceito ir pro asilo de velhos, como vocês estavam combinando na semana passada. Pensam que eu não ouvi? Falavam baixo, mas eu ouvi…
Luz marca seu rosto, agora emocionado.
– …e quando eu contei pro Feliciano isso me doía tanto, mas tanto, que eu nem conseguia falar: minha filha aceitar seu marido me botando no asilo pra se livrar de mim e pegar minha pensão…Eu não parava de chorar, falava e chorava, falava e chorava… Foi aí que ele criou coragem e (ri entre lágrimas) me pediu pra casar com ele!… Ah, meu Deus! É tão bom a gente se sentir querida, e útil, e necessária!
Pega a maleta, o casaco. Volta a pousá-los.
– Sabe que mais?…Em vez de ficar aqui pensando nas babaquices que vou ouvir daqueles dois, vou logo de uma vez. Deixo um bilhete: “Amanhã passo pra pegar minhas coisas”. E pronto!
Feliciano disse que ia ficar na janela me esperando…
Luz marca seu rosto, feliz.
– Tem alguém esperando por mim! Que é que eu posso querer mais da vida?…
Música.
Cantora: Se o azul do céu escurecer
E a alegria na terra fenecer
não importa, querido,
viverei do nosso amor
Se tu és o sol dos dias meus
se os meus beijos sempre forem teus
Não importa, querido,
o amargor das dores desta vida
Cantor: Um punhado de estrelas
no infinito irei buscar
e a teus pés esparramar
Cantora: Não me importam os amigos
risos, crenças e castigos
quero apenas te amar
Cantor: Se o destino então nos separar
se distante a morte te encontrar
Não importa, querida,
porque morrerei também
Juntos: Quando enfim a vida terminar
e dos sonhos nada mais restar
num milagre supremo
Deus fará no céu te encontrar.
(Hino ao Amor – Edith Piaf – versão Odair Marsano)
Conclusão
Luz no telão, Deus e o Diabo, em off as vozes, como sempre:
Deus – Como vê, Lúcifer, depois de séculos, apesar de todos os desentendimentos, descaminhos, crises e mudanças, o Homem e a Mulher não conseguem passar um sem o outro.
Diabo – Mas também não conseguem se entender! Então, EU ganhei a aposta!
Deus – Será…? Mas se ganhou, não levou.
Diabo – Como assim?…
Deus – Você se julga muito “esclarecido”, não é, Lúcifer? Mas esqueceu que Diabo não entende de Teologia.
Diabo – Te… teologia…?! E daí?
Deus – Na tradição mosaica, Adonai é masculino e feminino. Na doutrina cristã, pela Assunção, Maria subiu ao céu e está sentada à direita de Deus Pai : minha Trindade é, na realidade, um quaternio. E feminino também: inclui a Mãe de Deus.
Ruído de ventania furiosa agita toda a cena.
Diabo – Então… então… o Senhor sabia desde o início no que ia dar nossa aposta!
Deus – Mas você quis apostar…E tem livre arbítrio, como todos os seres criados…Sua “luz” não lhe deu “clareza” para ver isso?
Grito. Estrondo: Diabo explode (no quadro, se estiver sendo feito em animação).
Deus – Explodiu! Também, com esse gênio explosivo, só podia… Vamos ver o que vai querer aprontar da próxima vez…
Luz desce em resistência sobre o casal de velhinhos, que entrou e sentou-se á frente do telão, namorando. E Deus fica a contemplá-los.
Música – Hino ao Amor, com os dois cantores juntos, sobe novamente
marcando o
FIM